sexta-feira, 8 de abril de 2016

"Você deve ser mais tolerante..."

Explicação necessária: as situações a seguir estão fora de ordem cronológica, mas estão ligadas ao assunto do post e fui escrevendo conforme me vinham à mente.

SITUAÇÃO 1:

Fui num encontro com pessoas que conheci pela internet e se dispuseram a começar um novo projeto artístico comigo. Fui usando um brinco e um batom lilás, porque resolvi expressar mais o que eu sinto a respeito da minha identidade de gênero (e, no dia, estava experienciando um estado bigênero masculino-feminino). No fim do encontro, quando todos se levantam para ir embora, um cara começa a dizer:

Portador da palavra de dewlls: "Bem, eu sou cristão, de uma religião mais tradicional. E tenho o dever de levar a palavra de dewllss onde eu estiver. E dewlls quer que todos nós nos arrependamos dos nossos pecados e comecemos a seguir os planos que ele tem para as nossas vidas! Minha religião me pede para divulgar a palavra em todos os lugares e eu tenho que dizer: é preciso se arrepender dos pecados e aceitar o plano de dewlls urgentemente!"

Instaurou-se um climão na mesa, recheado de um silêncio extremamente constrangedor. Eu o encarava nos olhos, para ver se ele teria coragem de dizer que o recado era direcionado à mim. Como ele não teve tal coragem, nada falei, porque não queria que ele se esquivasse dizendo que eu havia interpretado erroneamente as palavras dele.

Depois de um tempo, as pessoas se despediram alegando o avançar das horas e foram indo uma a uma embora. Aguardei até que quase todos tivessem ido embora, sentado no meu lugar, esperando que o autor do "discurso inspirado por dewlls" tivesse a coragem de ficar a sós comigo para dizer que o recado foi para mim (imaginando que, talvez, ele não quisesse ter testemunhas para fazê-lo). Contudo, ele foi embora antes e fiquei sentado na mesa com apenas mais um dos participantes da reunião, para quem perguntei:

Cara Comum: "Será que esse 'sermão' todo no fim da reunião foi pra mim?"

Coleguinha hetero cis da paz: "Sei lá. Mas coisas assim é melhor ignorar..."

SITUAÇÃO 2:

Estava chegando de viagem na terra natal do ex-Maridão (nesta ocasião, nós ainda estávamos casados) e fazia um frio danado. Eu usava um cachecol e estava com as duas mãos ocupadas segurando malas (situação semelhante a do ex-Maridão). Um velho bêbado pára em frente a mim e ao ex-Maridão e nos encara. Um homem, um pouco mais novo e menos bêbado que o primeiro, alcança o tal velho bêbado e o segura pelo braço. O velho então solta a seguinte frase:

Velho bêbado (*usando um tom de deboche*): "Vocês são boiolas? Eu tô achando que vocês são uns viadinhos!"

O cara mais novo saiu puxando o mais velho pra longe e eu já ia atrás deles pra brigar com o bêbado audacioso, quando ex-Maridão larga as malas e me segura.

ex-Maridão: "Calma!"

Cara Comum: "Calma o caralho! Vou deixar o cara chegar e falar o que quiser com a gente, usando um tom pejorativo, e ir embora como se nada tivesse acontecido?"

ex-Maridão: "Você precisa ter mais paciência! Não precisa dessa agressividade toda..."

SITUAÇÃO 3:

Eu participava de um grupo de WhatsApp que se propunha a desconstruir preconceitos contra efeminados. Toda vez que questões ligadas a gênero entravam em pauta (especialmente sobre gêneros não binários), galera respondia meus "textões" e meus "audios de mais de 3 minutos" com frases simpáticas como "não vou ler isso tudo" / "não vou ouvir a bíblia narrada".

Um dia, pela zigolhonésima vez em que eu afirmava que gêneros não binários não podem ser cisgêneros porque a sociedade como um todo nunca impõe a alguém um gênero não binário, recebi de volta a mesma resposta do início da discussão: "pessoa de gênero não binário é diferente de pessoa trans*!" Não aguentei mais aquela situação e explodi: "Olha, se galera não concorda com o óbvio que tento mostrar nas minhas explicações, sugiro estudar mais sobre o assunto, ler outras fontes mais resumidas que minhas argumentações aqui"...

É claro que o povo tomou como ofensa uma pessoa de gênero não binário falando para pessoas cis estudarem sobre gênero não binário (já que a maioria dessas pessoas cis tinha "conhecimento acadêmico sobre pessoas trans*"). Eu, naquele momento, era taxado de "guardião de verdades absolutas" e que não conseguia "lidar com opiniões diferentes", mesmo que essas opiniões quisessem ter a primazia de definir O QUE EU SOU E O QUE EU SINTO! Minhas vivências e meus estudos de nada valiam perante uma maioria que discordava (afinal, a maioria sempre tem razão, certo?). Uma das pessoas do grupo, num tom mais diplomata, me disse: "Dizer que as pessoas precisam estudar mais sobre o assunto foi um pouco arrogante. Você tem que entender que esta é uma temática nova e há muito desconhecimento ainda. Você precisa ser mais compreensivo com as pessoas, principalmente em relação a conhecimentos que não estão socialmente cristalizados..."

SITUAÇÃO 4:

Numa reunião de uma ONG de luta pelos direitos de pessoas LGBTs:

Militante GGGG: Porque a nossa luta tem que trazer melhorias reais na vida de gays, de lésbicas e de pessoas trans*!

Cara Comum: Sério que você disse essa frase?

Militante GGGG: Claro! Não estou entendendo o seu tom de crítica...

Cara Comum: É que achei que um militante de uma ONG "LG-B-T" não iria esquecer de citar as pessoas bissexuais...

Militante GGGG: Ah, Cara Comum, você é radical demais... Você briga com a gente como se nós fôssemos o inimigo! Eu não sou o seu inimigo! Os nossos reais inimigos são o Bolsonaro, o Marco Feliciano... Você precisa ser mais tolerante com seus companheiros de causa...

SITUAÇÃO 5:

Uma prima distante minha, num bate-papo pelo Facebook, perguntava como foi assumir minha sexualidade para a minha família. Eu respondi:

Cara Comum: "Bem, eles fizeram tortura psicológica comigo, chamaram o povo da igreja católica que eles frequentam pra me exorcizar e me expulsaram de casa por isso..."

Prima Distante: "Ah, mas você tem que entender que eles são de outra geração, que foram criados de uma maneira diferente, que eles têm outros valores..."

Cara Comum: "Eu até entendo. Mas isso não deixa de me machucar, de me fazer mal, né?"

Prima Distante: "É, mas você precisa ser mais tolerante com eles. Afinal, são seus pais, né?"

SITUAÇÃO 6:

Achei esse print no Facebook que foi EXTREMAMENTE libertador para mim:
"Mas no final das contas, quem morre mesmo somos nós..."

18 comentários:

  1. O print é perfeito. Penso e tenho este ponto de vista sempre ...

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    1. Por que somos nós que temos que ser tolerantes??? É fácil pedir pra gente aguentar tudo calado...

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  2. To adorando você militando. Acho que sou da época em que o ex-maridão era o atual, e você falava que gostava de caras mais delicados, e tudo mais, mas agora está muito mais fácil entender tudo. E amando mesmo. Querendo aprender mais com você.

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    1. Quem dera eu fosse alguém que tivesse o poder de ensinar..

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  3. Pior que precisamos ser mais tolerantes, senão não iriamos passar um dia sem brigar com alguém hehe, mas tem situações tipo essa do cara bebado que não sei se tb não partiria pra cima dele.
    Curioso por saber como vc tem experimentado esse estado bigenero, na rua, locais publicos, como tem sido, coisas assim. Eu faço isso ha alguns anos e a reação as vzs é tensa, mto sangue frio e paciência com piadinhas preconceituosas e os olhares dos curiosos.

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  4. Rapaz,

    Ainda outro dia passei por aqui para ver se tinha notícias tuas! Olha, eu acho que isso é sempre um eterno jogo de "ganha e perde", as vezes acredito que precisamos ser mais tolerantes, as vezes acho que precisamos só ter um tico de paciência...

    Mas reconheço que falar isso de fora é bem mais simples... eu não sou exatamente "o militante"... mas digamos que depois que você começa a ler, se informar e pelo menos acompanhar as discussões é complicado se calar diante algumas situações...

    Abraço grande para você!

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  5. Desonestidade intelectual, agressão gratuita e 'umbiguismo do movimento GGGG" não dá pra ser tolerante.

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  6. É foda ter tolerância com pessoas ignorantes, mas ultimamente estou tentando não me indispor (quando dá, né!) para o meu próprio bem, mas tem certos seres que pedem para levar voice.

    Abraços

    Alexandre
    http://nossoconfessionariopublico.blogspot.com.br/

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    1. Eu também estou tentando não me indispor. Dews sabe o quanto!!

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  7. Nossa, esse dos GGG que dizem que o "real inimigo" são esses caras mais caricatos como Bolsonaro, irrita profundamente. É tipo um escudo que eles usam dentro do movimento para não ter de lidar com os próprios erros e preconceitos.

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    1. Pois é... E eu tenho que ser tolerante com isso, né? Sei... Comigo isso não cola!

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  8. eu ri da primeira, da segunda...mas depois eu comecei a ver tristeza das situações, quanta dor e opressão elas representavam.. e depois parei de rir e me sentir triste! obrigado por compartilhar, eu tenho mania de rir de mim mesmo mas ás vezes eu tenho que aprender a levar a serio todos o sinais de preconceito!

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    1. Podemos rir, podemos chorar, podemos reagir como for. Mas ser tolerante e fingir que nada está acontecendo é que é dose...

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  9. Adorei todas as historias, para la de verdadeiras com certeza... minha prima passou por uma boa ha uns dias atras, muito parecida com as daqui, de uma olhada quando tiver tempo, ate´citei vc
    abs

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